domingo, 28 de novembro de 2010

O homem do século XXI

O HOMEM DO SÉCULO XXI: SUJEITO AUTÔNOMO OU INDIVÍDUO DESCARTÁVEL
Particularmente durante todo o século XX, vimos se afirmar a idéia de que o indivíduo devia e podia tornar-se um sujeito autônomo, sujeito histórico sujeito de direito, sujeito psíquico e sujeito moral, portanto, sujeito de suas ações. Pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, o homem é reconhecido, na sua eminente dignidade, como tendo direito a ter direitos.

O cidadão é aquele que participa e tem uma voz ativa na vida política de seu país e possuem direitos, para que não sejam submissos inteiramente a alguém ou alguma entidade.
Para que o indivíduo pudesse tornar-se um ser histórico, foi preciso naturalmente que ele se tornasse um ser de direito, ou seja, alguém que desfrute de direitos (direitos políticos, direitos civis e, mais recentemente, direitos sociais) e, sobretudo que seja reconhecido como tendo o direito, como ser humano e como cidadão de um país, de gozar da totalidade dos direitos acordados (ou arrancados) ao conjunto dos cidadãos nacionais ou ao conjunto dos homens residentes num território. O sujeito de direito é, pois, um indivíduo considerado, respeitado frente a todos os outros e que está sob a proteção de uma lei semelhante para todos.
O nascimento do sujeito psíquico é mais recente. É à psicanálise que o homem moderno deve não apenas a descoberta crucial do inconsciente e, portanto, de sua divisão estrutural, mas sobretudo do reconhecimento em si de uma atividade psíquica intensa e contínua outorgando um grande lugar ao jogo das pulsões, dos sentimentos, dos desejos, das fantasias e dos processos de recalque, de idealização, de projeção, etc., que animam tanto a vida dos indivíduos como a do socius.
Pode-se, pois, concluir que o homem está no caminho de sua autonomia, de ditar a si mesmo as próprias regras e de ter uma visão otimista do futuro. O homem não teria mais necessidade de grandes transcendentes para conduzir a sua própria vida.

Mas, por outro lado, ao mesmo tempo, vê-se surgir três problemas fundamentais:
  • O reino do dinheiro, tornado um fetiche sagrado: Está ligado à submissão cada vez mais clara de todas as nações à lei do mercado mundial, produzida pela vitória da racionalidade instrumental. Submissão de todos ao reino do dinheiro.
    De certa maneira, podemos afirmar, sem risco de sermos contraditados, que o mundo atual se tornou sádico. Os antigos valores de mérito, trabalho, honra, prestígio e “a herança histórica, usada pelo capitalismo, inclusive a honestidade, a integridade, a responsabilidade, o cuidado no trabalho, o respeito aos outros” (Castoriadis, 1996), foram desvalorizados em prol de um único valor: o dinheiro. “Tudo se compra e tudo se vende.”
    Conseqüências ao nível coletivo: dissolução do vínculo social, exclusão ou “desvinculação social” (R. Castel, 1995), competição exacerbada, pilhagem do planeta, enfraquecimento dos movimentos sociais, diminuição das lutas sindicais. E, por outro lado, importância crescente das empresas, que querem ser “as instituições divinas”, e de suas conseqüências ao nível individual: os indivíduos devem se integrar, ou melhor, se identificar às organizações das quais fazem parte. Idealizá-las, colocando os valores organizacionais – seu próprio ideal do ego – no lugar dos seus próprios valores, transformar-se em instrumentos submissos, dóceis mesmo, e sobretudo acreditar, se lhe disserem e se eles se sentirem responsáveis enquanto sujeitos, que estão a caminho da autonomia.
    É a psicologização dos problemas que se coloca em prática. Uma instituição e uma organização não são menos organizadas ou geridas dentro dessa concepção. Se elas fracassam, é sempre ao indivíduo que a responsabilidade é imputada. Assim, os indivíduos estão sempre em situação de prova, em estado de estresse, sentem queimaduras internas, tomam excitantes ou tranqüilizantes para dar conta da situação,para ter bom desempenho, para mostrar sua “excelência” (entramos numa civilização de dopping); e, quando esses indivíduos não são mais úteis, eles são descartados apesar de todos os esforços despendidos.
    Para dizer algo sobre o futuro, que parece bem sombrio a esse respeito, as novas tecnologias favorecem a eliminação de milhares de pessoas no mercado de trabalho. A racionalidade instrumental e as estratégias financeiras atingem, pois, o objetivo: utilizar o sujeito, que acredita ser em grande parte autônomo, para superexplorá- lo e aliená-lo. O mundo atual tende a tornar-se o do crescimento do desprezo, da generalização da desconsideração, do desrespeito, da recusa da diferença a que tem direito todo ser humano.
  • Aumento do poder do estado: Se o indivíduo é submetido às estratégias financeiras, ele o é igualmente ao Estado do qual é cidadão. É certo que ele tem direitos no seu país, mas direitos que dependem apenas da boa vontade do Estado, mesmo daquele que é democrático. Deve respeitar e submeter-se a todas as leis, mesmo àquelas que lhe parecem injustas ou arbitrárias, e mesmo se for tratado como cidadão de segunda classe, como o são os trabalhadores informais da América Latina. O homem não deve ser apenas um trabalhador que contribui para a riqueza de sua nação, ele deve ser e querer ser um guerreiro. Não é sem motivo que E. Jünger, em seu livro Le travailleur et la mobilisation totale (1930), unificou as figuras do trabalhador e do guerreiro: todo trabalhador permite à sua nação ganhar, portanto ele é um guerreiro; todo guerreiro realiza um trabalho necessário à nação – preservá-la de outras ou de levantes internos –; ele é, portanto, um trabalhador.
    A democracia representativa triunfou. Mas, de fato, como vimos, é a regra do dinheiro que adveio. O que torna o sujeito menos dominado pelo Estado (exceto nas ditaduras) é substituído pela sua sujeição ao dinheiro.
  • Um “retorno” identitário ao grupo a que se pertence, e crença nos seus fundamentos: Uma reação no nível coletivo - Muitas pessoas tentam reencontrar suas raízes, retorno ao antigo como alguns costumes, modos e danças . Porém muitas vezes isso torna-se perigoso já que se antigamente tivemos momentos nada agradáveis a história da humanidade como por exemplo o nacionalismos da África negra que se traduz pela eliminação e pelo massacre de populações inteiras; a renovação dos integrismos religiosos, a proliferação de seitas, de comunidades fechadas (dos guetos), gangues de bairro etc.; enfim, um “espírito de corpo” pervertido.
    Se é importante respeitar as diversas culturas, como Lévy-Strauss sublinhou em Race ET histoire, no qual demonstrou que nenhuma cultura pode se orgulhar de superioridade em todos os domínios sobre outra. Uma reação no nível individual - vêem-se cada vez mais pessoas que se voltam à sua própria identidade, que cuidam apenas de “si”, de sua vida privada, de seus investimentos cotidianos, de sua família. O homem, então, não se sente mais fazendo parte de uma espécie humana e não participa mais do trabalho da civilização. Considera os outros apenas obstáculos ou objetos de prazer.
    Como observado por R. Sennett (1974) o homem acabou por se considerar um fardo, deprimido, desamparado vê nisso desculpa para recorrer às drogas, cria-se um sentimento de conformismo.
    O indivíduo não deve se perder no coletivo, deve manifestar plenamente sua individualidade e ao mesmo tempo trabalhar com os outros para construir alguma coisa. Nada pode ser feito sem envolvimento individual forte nas ações políticas, que são pensadas, discutidas. E as pessoas começam a crer.
Existem em nossas sociedades muitas mortes, mortes físicas, mortes psíquicas, mas é o amor – seja como amor total, seja como ternura, amizade, camaradagem, solidariedade, fraternidade – que deve nos animar. É preciso pensar não apenas na liberdade e na igualdade. A fraternidade é também alguma coisa de essencial. É a percepção real de que as sociedades não podem se fundar nem perdurar se não desenvolvem um mínimo de prazer, até o regozijo de estar junto.

“O Homem do século XXI: sujeito autônomo ou indivíduo descartável?” Eugène Enriquez, Université Paris VII In:RAE-eletrônica, v. 5, n. 1, Art. 10, jan./jun. 2006

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